“Este não é um relato de ações impressionantes. É um pedaço de duas
vidas tomadas em um momento, que cursaram juntas um determinado trecho, com
identidades de aspirações e conjunção de sonhos. Foi nossa visão demasiadamente
estreita? Muito parcial, muito apressada? Foram nossas conclusões muito rígidas?
Talvez. Mas este vagar sem rumo pela nossa imensa América me mudou mais do que
pensei. Eu... Já não sou eu! Pelo menos não sou o mesmo eu interior.” – Ernesto
Rafael Chevara de la Serna, em “Diários de motocicleta”.
(Imagem real (primeira) e a retratada em "Diários de motocicleta", na volta de Ernesto e Alberto do Peru ao fim da viagem latino-americana.)
Isso nos leva e até nos responde tal pergunta: “Qual o impacto das condições socioeconômicas da América latina nas transformações de Ernesto em “Che Guevara”?”.
O filme “Diários de motocicleta” relata a primeira viajem de Ernesto, que junto a seu amigo Alberto Granado, percorre a América latina. Ernesto era, na época, um estudante de medicina. Por ser da classe média, teve a sorte de “viajar por viajar”, mas não teve uma simples e mera visão sobre seus países vizinhos. Por terem viajado com pouco dinheiro, a bordo da “La Poderosa”, motocicleta que caia aos pedaços, realizaram o percurso a partir da ajuda de pessoas que os forneciam moradias temporárias. Esses contatos diretos com a população extremamente desigual destes países tão próximos a sua Argentina que fizeram com que Ernesto conseguisse e, principalmente, com que ele quisesse enxergar a realidade que o cercava, e que ele não vivia. Não vivia, mas se importava. Importava-se agora com as injustiças extremas que o sufocavam, junto ao resto que sofria com as desigualdades da América latina.
(Trabalhador das minas, que Ernesto e Alberto encontram no Deserto do Atacama. Representa, no filme, a realidade sofrida e desigualdade em que eram obrigados a viver grande parte do povo latino-americano.)
Ernesto fazia medicina por “querer fazer a diferença”, mas após sua
primeira viagem, percebe que isso não é suficiente. O mundo é injusto, as
condições socioeconômicas da América latina são desiguais, injustas, e não são
muitos os que parecem se importar. Podemos perceber seu novo olhar perante a
sociedade quando Ernesto e Granado trabalham temporariamente em um hospital no
Peru. Fuser, apelido dado por Alberto a Ernesto, se choca com a divisão social,
uma vez que os pacientes, os doentes, eram afastados aos sãos por um rio. Neste
mesmo hospital, freiras tinham como regra o simbólico uso de luvas para os
médicos, quando em contato com os pacientes que sofriam de lepra, uma doença
não contagiosa. Simbólico, pois era somente sobre status, divisão de classes
“superiores”, economicamente, e “inferiores” entre si.
Enquanto Alberto vai para um estágio de medicina, em Caracas, Ernesto volta a Buenos Aires, com o intuito de terminar sua faculdade. Porém agora já não é mais Ernesto, não é mais o mesmo, como explica no trecho que destacamos no início. As injustiças latino-americanas mudaram Ernesto. O fez abrir os olhos para enxergar claro o suficiente e perceber que a América latina não tão diferente, não deveria ser tão desunida e dividida, vista com grandes divergências, uma vez que tem culturas semelhantes e problemas socioeconômicos idênticos. Isso o leva terminar rapidamente sua faculdade e iniciar sua segunda e ultima viajem pela América latina, agora com outro companheiro, chamado Carlos Calica Ferrer. Já não era mais o mesmo Ernesto de antes, mas agora oficializa seu novo eu, conhecido como “Che” Guevara, ao conhecer, no México, Fidel Castro. Finalmente, adere ao grupo revolucionário cubano e participa da tão conhecida Revolução Cubana, marcada pela derrubada do governo de Fulgêncio Batista e a implantação de uma política socialista. Ainda, lutou por estes ideais no Congo e na Bolívia.
Talvez sua visão tenha sido “apressada, parcial, estreita, rígida” como diz Ernesto após sua primeira viagem. Mas com toda certeza, se não foste por esta, talvez ainda seria Ernesto, Fuser. Talvez também ainda seria um médico classe media que pouco se importaria com as questões sociais e econômicas de seu próprio pais e, principalmente, países vizinhos. Estes que sofriam desde seus impostos colonialismos, colonizadores que se diziam “superiores”, que tiraram suas culturas, costumes e tesouros econômicos. Mas graças a essas duas viagens, e principalmente a primeira, enxergou o que nunca pode sequer querer ver: Desigualdades, atrocidades de um mundo tão injusto, que agora, se dependessem dele, desapareceriam. E é exatamente por isso que o novo Ernesto, Che, vai lutar durante toda sua vida. Lutará até sua morte por uma América latina unida e justa, um mundo mais justo! Um mundo sem “simbologias”, sem divisões latino-americanas, sem divisões socioeconômicas. Um mundo socialista, talvez. Ou mesmo que não socialista por inteiro, desde que fosse justo. Justiça ou morte, “Pátria ou morte”, como dizia, significava. Como sentia, o novo Ernesto Che Guevara, que de certa forma nunca deixou de ser Ernesto, e sim amadureceu o suficiente para se tornar “Che”, como podemos perceber em uma de suas famosas frases, traduzida: “Há que endurecer, mas sem perder a ternura, jamais.”
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